Que a força do medo que tenho não me impeça de ver o que anseio;
Que a morte de tudo em que acredito
não me tape os ouvidos e a boca;
Porque metade de mim é o que eu grito,
mas a outra metade é silêncio...
Que a música que eu ouço ao longe seja linda, ainda que tristeza;
Que o homem que eu amo seja pra sempre amado mesmo que distante;
Porque metade de mim é partida mas a outra metade é saudade...
Que as palavras que eu falo
não sejam ouvidas como prece e nem repetidas com fervor,
Apenas respeitadas como a única coisa que resta
a uma mulher inundada de sentimentos;
Porque metade de mim é o que ouço mas a outra metade é o que calo...
Que essa minha vontade de ir embora
se transforme na calma e na paz que eu mereço;
E que essa tensão que me corrói por dentro seja um dia recompensada;
Porque metade de mim é o que penso mas a outra metade é um vulcão...
Que o medo da solidão se afaste e que o convívio comigo mesma se torne ao menos suportável;
Que o espelho reflita em meu rosto
um doce sorriso que me lembro ter dado na infância;
Porque metade de mim é a lembrança do que fui,
A outra metade eu não sei...
Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
para me fazer aquietar o espírito
e que o teu silêncio me fale cada vez mais;
Porque metade de mim é abrigo
mas a outra metade é cansaço...
Que a arte nos aponte uma resposta
mesmo que ela não saiba e que ninguém a tente complicar
porque é preciso simplicidade para faze-la florescer;
Porque metade de mim é platéia e a outra metade é canção...
E que a minha loucura seja perdoada porque metade de mim é amor a outra metade... também.
Oswaldo Montenegro
Aceitarás o amor como eu o encaro ?
Azul bem leve, um nimbo, suavemente
guarda-te a imagem, como um anteparo
contra estes móveis de banal presente.
Tudo o que há de melhor e de mais raro
vive em teu corpo nu de adolescente,
a perna assim jogada e o braço, o claro
olhar preso no meu, perdidamente.
Não exijas mais nada. Não desejo
também mais nada, só te olhar, enquanto
a realidade é simples, e isto apenas.
Que grandeza... a evasão total do pejo
que nasce das imperfeições. O encanto
que nasce das adorações serenas.
Oswald de Andrade